As frases eram rimadas, e cada página ilustrada acompanhava uma estrofe impressa em letras grandes. Compramos juntos no fim da tarde. Eu estava satisfeita e caminhávamos de mãos dadas, fazíamos questão. Lembro-me que o céu desavermelhou depressa. Crepúsculo. Chegamos onde eu supus ser a casa da moça: paredes internas cobertas de um ladrilhado pequeno, de um azul infinito que lembrou o fundo de algumas piscinas. Do lado de fora havia uma avenida, larga e movimentada. Pela vidraça do prédio eu observava as tartaruguinhas vermelhas, vibrantes, alinhadas num rastro circense. Aquele foi sem dúvida um ótimo presente, o alfabeto inanimado ganhava personalidade: vogais e consoantes, por razões desconhecidas, se aproximavam e formavam sons, dançando em trajes de festa junina.. Ela abriu a porta. Não me lembro de ter ouvido palavra trocada entre eles. Estavam bem próximos, e num espaço de tempo que não ser dizer ter sido de dois ou de quarenta minutos, em que mantive meus olhos entretidos no livro, notei, quando voltei a observa-los, que papai se livrara do palito e desabotoara a camisa. Devia estar muito quente. Eu sentia minhas mãos úmidas amolecerem lentamente as páginas do livro. A casa era estreita e o teto parecia muito baixo, eu me perguntava se já havia estado em um apartamento antes. Sentaram-me em uma bancada almofadada, que certamente servia de sofá. Me dava uma visão privilegiada do ambiente: um cômodo largo e pouco arejado, seu interior igualmente coberto de ladrilhados pequenos e azuis.
Notei que eles se afastavam, ouvia sussurros e risadas abafadas cada vez mais frequentes. Deixaram-me a televisão ligada, adormecida sobre um móvel velho. Telenovela. As vozes emitidas pelo aparelho se confundiam com os múrmuros que vinham de onde supus ser o quarto da moça. Curvei levemente o pescoço e pude observar o cortinado que cobria quase toda a parede, colorido em um sépia levemente envelhecido. Um aparelho de som se acomodava sobre uma penteadeira. Haviam CD’s, perfumes, e jóias, como o quarto de uma irmã mais velha. Ela devia viver ali sozinha, pois não haviam mais portas. Procurei não desviar minha atenção do novo presente, valendo-me do esforço que fazia para decodificar os verbetes. As figuras eram vívidas e cumpriam bem sua função de manter entretida a recém alfabetizada. Lembro-me de ter notado, epifanicamente, que as a cada fim de frase as palavras se assemelhavam umas das outras, o que deixava a leitura sonora, quase divertida.
O barulho de um móvel bruscamente arrastado me tirou da inércia esforçosa da leitura. Alguém havia apagado a luz do quarto, deixando-os a imagem ainda mais intrigante, flagrados pela penumbra resultante da luz acessa do cômodo maior. Papai pressionava a moça na parede. O cabelo pouco e negro da estranha, parecia agora úmido e desalinhado, deixando-a ainda menos amistosa. Me desinteressei, em momento, pelo livro e passei a observá-los mais atentamente. Falavam coisas inaudíveis, e num movimento lento da cabeça da mulher pude notar seus olhos e lábios entreabertos. Sua expressão era leve. E o batom róseo, quase vermelho, que antes cobria-lhe os lábios finos e maldosos, agora se alastrava por uma de suas bochechas, dando a ela um aspecto sombrio, quase assustador. Notei que a blusa de mangas compridas que a moça usava quando chegamos deitava-se agora sozinha na cama estreita, coberta por uma manta alaranjada com estampas quaisquer. As alças do vestido florido escoriam-lhe pelos ombros, e os seus braços tão brancos e languidos se penduravam no pescoço do meu pai. Quis me levantar, mas me assustei com um grito contido e agudo emitido inesperadamente pela moça. Agarrei mais intensamente os meus dois livros, me faziam sentir importante, crescida. Desviei o olhar, repreendendo a curiosidade dos olhos. Avistei uma cesta de frutas que ela me oferecera quando chegamos, apontando com o dedo magro de unhas coloridas. Fui até lá, observando cada detalhe do lugar onde a anônima vivia. Cravei os dentes de leite na ameixa, cujo gosto doce eu me lembro ainda hoje. Quando voltei, a porta estava fechada.